sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

"A Força da Dor - Demétria

Demétria olhava o mar, quando Caio se retirava, ela começou a falar:
- A lua, tão linda, tão grande ainda fica mais linda quando cheia se banhando despudorada sobre o mar, como se ele a possuísse ou ela a ele. O mar nem tudo testesmunha. A lua, por mais escondida que esteja tudo vê, tudo sabe...
Caio parou e ficou ouvindo Demétria que continuava:
- A lua e sua infinita beleza, cheia, tudo clareia e testemunha os amantes, inspira os poetas...O mar guarda os segredos, mas muita coisa não vê. A lua vê e não testemunha só os amantes e inspira os poetas. Ela também está no deserto, na solidão, na morte, na guerra, no ódio, no amor...- Os olhos dela começavam a encher de lágrimas - Eu nasci na Faixa de Gaza e ninguém lá pode dizer que tem uma infância feliz, porque, por onde a gente anda, sabe que, a qualquer momento, verá sangue, muito sangue derramado, muita  dor, muito medo. É o tormento, todo o tempo, a cada dia, a cada hora, a cada minuto, a cada segundo...Tudo é sombra e tristeza. Mesmo assim, a gente busca tirar daquilo tudo, algo de bom, mesmo que o bom, seja apenas alguns pequenos momentos. Eu sou a segunda filha de uma família de oito irmãos. Éramos onze em nossa pequena casa em Gaza. Meus sete irmãos, meu pai e minha mãe. Nós éramos muito pobres, numa terra de vida precária demais, faltava água, faltava comida e víviamos sob o domínio de Israel. Mamãe cuidava de todos nós com muita dedicação e amor. Papai passava o dia fora tentando trazer sustento pra nós e nos amava imensamente. Mesmo cansado demais, por anos ele dormia sentado, com a cabeça sobre a mesa da pequena sala, sempre com uma arma na mão, pra nos proteger a todos. Meu irmão mais velho, com dezessete anos, desde os sete anos, dormia ao lado do meu pai, segurando também uma arma. Eu ficava escondida atrás da cortina de pano velho e rasgado que era o que separava a sala do único quarto onde todos dormiam amontoados. Naquela noite, eu tinha acabado de fazer dezesseis anos. Papai e meu irmão dormiam, como sempre, debruçados sobre a mesa, com as armas nas mãos, quando, de repente, dois soldados empurraram a porta e entraram atirando, acertando meu irmão e meu pai, antes que eles sequer despertassem direito, depois, puxaram a cortina e atiraram na minha mãe e em todos os meus irmãos que dormiam. Todos mortos com tiros na cabeça. Depois, partiram, como se nada tivessem feito. Eu tremia desesperada e nem podia gritar. Saí de trás da cortina e vi meu pai ainda vivo me olhando e , com mãos trêmulas, empurrando a arma pra mim. Quando eu peguei a arma das mãos dele, ele já estava morto. Eu saí com aquela arma na mão, cega de dor e de ódio, sem saber ao certo que rumo tomar, mas certa do que eu tinha que fazer. Era lua cheia. Tudo clareava menos a minha visão, cega de tanta dor e do que fazer. Os soldados estavam acampados um tanto distante de casa e eu fui, com a cara e a força da minha dor, na direção deles. Lembro que pessoas me avisavam que a direção que eu tomava, era de um campo minado. Eu não temi. Quem perde tudo, perde o medo também. Passei por aquele campo minado, sem um arranhão. O primeiro soldado que vi, foi justamente o mais cruel dos dois que mataram a minha família. Ele dormia e eu o acordei. Quando ele me olhou, sentiu o cano frio da minha arma na cabeça dele e, talvez, a minha própria frieza. Atirei e ele cai morto. Os outros despertaram e começaram a atirar e eu saí correndo, passando de novo, pelo campo minado. Eu morreria naquele campo minado, mas jamais nas mãos ou pelas mãos do inimigo. Atravessei de novo aquele campo ilesa, mas vi e ouvi os gritos atrás de mim, de corpos explodindo no ar. Eu não matei só um soldado. Eu matei também os que queriam me matar e não sei quantos foram, naquele campo minado. Eu fui me esconder, num cubículo que só meu irmão e eu sabíamos dele. Um lugar erguido com madeira podre, num quadrado que mal me cabia em pé e uma porta que eu fechei. Lá dentro havia sangue, fezes, urina, moscas, mosquitos tudo era insuportavelmente fedido e nojento. Não dava sequer para sentar, muito menos pra deitar e eu estava cheia de dor, de medo, de pavor sentia as minhas necessidades escorrerem pelas minhas pernas, não tinha como me limpar e elas se somavam ao cheiro insuportável daquele lugar. Em pé eu cochilava. Tudo era escuro e assustador. Eu não sabia se era dia se era noite e nem quanto tempo estava ali. Eu vomitava de nojo e nem tinha sede, nem fome. Tudo era exaustão física e emocional. Eu só esperava a morte chegar. E, como ela demorava aumentando cada vez mais e mais meu sofrimento indescritível...

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